terça-feira, 24 de março de 2009

Nada do que não foi poderia ter sido*

Sobre o livro de Cristovão Tezza, O filho eterno


Na vida há um equilíbrio, ou desequilíbrio sabe-se lá, entre acasos e escolhas. Aceitar a inevitabilidade do que independe de nós não pode paralisar escolhas que também fundamentam as direções dos nossos destinos (falo aqui do plano emocional, não político-social).

“O inexorável é a transformação: qualquer uma.” - Tezza diz isso se referindo ao transcorrer do tempo.

A equação, sempre inexata, entre acasos e escolhas – que nos leva a ações e a pensamentos – acaba por nos transformar no que somos (num processo sempre contínuo). Entender essas transformações pode até não ser fundamental para crescermos. Mas trazer à tona alguns – pelo menos alguns – desses processos inconscientes enriquece infinitamente esse crescimento.

O personagem de Tezza não se furta a isso, mesmo que tenha seus momentos de fuga (como temos todos). Escolhe, mas também aceita.


*essa frase permeia todo o livro

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Da série quotes

ou Da relatividade de todas as coisas


“... interessante verificar como a própria bondade, supondo que dela é que estamos a falar, varia com as circunstâncias e os objetos, com a saúde do momento, com o humor da ocasião, a bondade, mal comparada, é assim como um elástico, estende, encolhe, capaz de envolver a humanidade toda ou apenas a só pessoa, egoísta, isto é, bondosa para si própria..”

(Saramago, em História do cerco de Lisboa)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Waltz with Bashir



Valsa com Bashir não tinha melhor hora pra surgir no circuito. No filme, um ex-soldado israelense tenta resgatar a memória de sua participação na invasão do Líbano por Israel, no começo dos anos 80. Ele esqueceu toda a guerra, mas uma passagem o deixa mais intrigado do que outras. Onde estava quando, depois da morte de seu líder (o Bashir do título), os cristãos libaneses massacraram os palestinos? O homem precisa resolver essa questão com a própria consciência.


O filme assume apenas uma participação passiva de Israel nesse massacre. Um observador que não tinha muito o que fazer para evitá-lo. Mas o Estado tem outros massacres em seu currículo (que continua a crescer inclusive nesse minuto). E como o homem do filme, Israel parece ter relegado essas lembranças a um lugar ermo de seu cérebro. Há então uma espécie de inconsciente de Estado. Resta saber se algum dia ela emergirá para atormentá-lo.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Esperando Gullar

Ferreira Gullar é não só o maior poeta brasileiro vivo, é também um pensador da arte e um dos grandes teóricos brasileiros no tema. Sua produção poética é quase um compêndio da evolução da arte brasileira na segunda metade do século XX, até por ser um poeta que reflete sobre a própria obra. Foi do panfletário ao concreto, da preocupação exclusiva com a mensagem política ao extremo da experimentação da forma, até encontrar o meio termo na sua obra prima, Poema sujo, publicado em 76 (mas o meu poema preferido de Gullar – e talvez o meu poema preferido at all, se eu pudesse fazer essa escolha – é A vida bate, de seu livro anterior, Dentro da noite veloz).
Tudo isso porque Gullar pretende lançar, ainda nesse semestre, um novo livro, Em Alguma Parte Alguma, e 5 dos seus novos poemas foram publicados pelo Portal literal. Um deles me agradou de pronto, o que nem sempre é fácil na poesia. Conciso, simples, traduz com perfeição a função essencial da arte de criar a capacidade do livre pensar. Enquanto não chega o resto, fiquemos com ele:


Off price

Que a sorte me livre do mercado
e que me deixe
continuar fazendo (sem o saber)
fora de esquema
meu poema
inesperado
e que eu possa
cada vez mais desaprender
de pensar o pensado
e assim poder
reinventar o certo pelo errado

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Be the change


Eu não compartilho de toda essa euforia em torno do Obama. Mas é fato que em seu discurso de posse ele tocou num ponto que é pra mim uma das revoluções em curso no mundo: a conscientização da responsabilidade individual. A gente viveu pelo menos duas décadas de um distanciamento cínico, um individualismo que criou uma espécie de bloqueio na nossa capacidade de indignação e de engajamento. Eu penso que isso está mudando, se não em todos, em grande parte. Enfim, é piegas e não é a primeira vez que eu falo isso, mas acredito na revolução pessoal. E esse vídeo, embalado pelo discurso do Obama, pretende provocar exatamente isso: revolucione-se.



segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Aniversariando


Eu sempre tive nos aniversários a mesma sensação do reveillon: uma estranha festa onde se comemora uma mudança que de fato não ocorre. Ranzinza, eu sei. Mas não sei se pela idade (eu tenho rejuvenescido com o tempo, já que nasci com uns 80 anos), não sei se pelo fato de ter renascido quase que literalmente há alguns anos, tenho aprendido a respeitar essa simbologia do recomeço. Portanto, hoje, recomeço.
Mas antes de avaliar o que a gente faz com o tempo, analiso o que o tempo faz comigo. E penso o que de bom o fato de envelhecer pode trazer e, principalmente, no que não deve levar embora. Mais tempo, mais experiência. E a equação acaba aí. Experiência não é sinônimo de mais esperteza. Não necessariamente. Mas eu me saio bem em não cometer os mesmos erros. Mais um ano é sinal de mais livros lidos, mais filmes vistos e assim adiante. É mais 1 ano alimentando a memória cultural. A incapacidade de absorver toda essa informação é fonte segura de inquietação. E inquietação é precisamente o que não pode deixar nossas cabeças adormecerem, para o bem do conformismo.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

A verdade está lá fora (ou Escreveu não leu...)



Odeio dizer “os gregos disseram tudo”, mas os gregos disseram tudo. Quando Sócrates ficou ressabiado ao descobrir sobre a invenção da escrita, num dos diálogos de Platão, ele tinha razão. Sim, a escrita permitiu uma forma muito sofisticada de transmissão de conhecimento e nós só sabemos o que os gregos disseram graças a ela. Eu inclusive me ocupo da escrita. Nada contra, em absoluto. Mas há um lado negro em sua força.


Quando queremos certeza pedimos “preto no branco”, a grande analogia da cor do papel e da tinta das letras. E temos as leis, os decretos, os contratos e tudo mais assinado registrado carimbado avaliado e um bom advogado desdiz e diz de novo de um novo jeito e de repente pega. Na Inglaterra, por exemplo, a constituição não é escrita. É baseada em costumes e é muito mais pétrea do que a brasileira, porque só muda se mudar toda uma estrutura social consolidada.


Sócrates alertou que a escrita iria prejudicar a memória; que as lembranças, ao invés de guardadas no interior, seriam confiadas ao papel. E com este vagando por toda parte, lido por todos, inclusive por aqueles que não o compreenderiam, seria impossível defendê-lo de maus julgamentos. Não é diferente do que se vê hoje, quando jornais, revistas e similares são bradados como provas de fatos. Incontestáveis por serem papéis pintados com tinta.
PS. Achei pouquíssimos textos de Platão online, e dentre eles não encontrei Fedro, onde está o diálogo A invenção da escrita.